Apresentado originalmente para a disciplina de Teoria Estética ministrada pelo Prof. José Luiz Furtado no programa de Mestrado em Estética e Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto

 

Juliano Aparecido Pinto

Filosofia como exercício de escuta em Edmund Husserl

Introdução

“Fui compreendido? Todo filósofo escreve para ser e não ser compreendido ao mesmo tempo.” Nietzsche

Desde os tempos imemoriais, a Filosofia buscou ser Ciência de rigor[1], sistemática em busca da verdadeira verdade. Tal projeto ora mais intenso, ora menos intenso, mas jamais abandonado. A Filosofia nasce como religião do logos, fundamentada neste a reflexão filosófica enveredaria desde o seu erigir nos caminhos da rígida coordenação da racionalidade. Esta insurgiria ou determinaria a partir da idéia de clareza, precisão e identidade o que deveria ser tomado como discurso verdadeiro e o que deveria ser combatido por não se fiar nos caminhos da reta razão[2].

Não basta, entretanto, identificar o fundamento, é preciso expressá-lo nos moldes linguísticos. Nossa Hipótese é a de que há uma cumplicidade entre a razão e o discurso. Como pretensa Ciência expressada no horizonte fundacional, a Filosofia acabaria por impor limites à sua própria atividade investigadora[3]. Ora, o que seria o fundamento pré-posto, senão uma pré-determinação de como a realidade deveria ser experimentada ou interpretada? Cumpre dizer, o conceito não diz a realidade, mas a determina. Afinal, sem pormenores, o real seria somente aquilo que o conceito diz ser? Se a resposta, se é que existe, a esta provocadora questão for não, então a Filosofia estará pautada no dinamismo das constantes insinuações, o espanto frente ao real-plural da vida será o impulsionador da investigação que se pretenda filosófica.

Por outro lado, se a resposta for sim, então a Filosofia já nascera fracassada, pois nenhum contato com a realidade da vida teria. Ora, a existência se revela, para nós, como constante experiência do espanto, ou do taumos dirá Aristóteles[4]. Tal experiência, para longe de ser algo negativo, seria, antes, Estímulos para que o vivente exerça sua capacidade de interpretar, tornando-se cada vez mais em posse de si e da realidade que o circunda. Somente a termos metodológicos estamos aqui pautados na expressão de que há um sujeito e um objeto. Em resumo, o que se procurou apontar foi o seguinte: “A razão é apenas um modo de se expressar na vida, e não um dispositivo ‘manufatureiro’ de relações vitais. O horizonte da vida evade-se constantemente, é, antes de tudo, não predicativo[5].”

O presente ensaio filosófico buscará apontar, não de modo exaustivo, no pensamento de Husserl a possibilidade de um pensar filosófico originário, isto é, busca-se no pensamento de tal pensador aludido aquela experiência filosófica não determinada pelos conceitos. Dito em miúdos, pensamos que a Filosofia tem seu início não no rigor dos conceitos dialéticos, matemáticos, mas no estranhamento possibilitado pela experiência diante do pré-conceitual, originário, antepredicativo da vida. De acordo com nossa hipótese de interpretação do Filósofo em questão, o “Ser” objeto da indagação filosófica se dá, ou melhor, se doa a nós de modo fenomênico. Isto implica dizer, que a rigidez de um sistema de pensamento não nos possibilitará experimentar a manifestação originária das coisas em sua realidade própria. Afirma Luiz Furtado: “Por esta via a verdade, pensada fenomenologicamente, repousa, acima de tudo, sobre a possibilidade da manifestação originária das coisas em sua realidade própria. O ser do ente é sua manifestação na condição de fenômeno para nós[6].”

DELIMITAÇÃO

Tendo delineado as coordenadas do presente ensaio, vale dizer, apontar em uma perspectiva husserliana o estranhamento como escuta do Ser. Se bem entendido, chega-se à conclusão de que o buscado é uma possível proposta para uma eminente experiência filosófica. Não queremos pensar o sistema filosófico de Husserl, aqui está o limite de nossa pesquisa. Nosso intuito será procurar argumentos que validem a nossa hipótese, a saber, “Filosofar é estranhar o mundo”. Esta experiência será uma necessidade para se estabelecer uma investigação de cunho filosófico. O Ser se dá como fenômeno, em sua pura originalidade, anteposto a qualquer conceito. Ora, se o objeto da Filosofia é elucidar o Ser, então nossa pesquisa será de fundamental pertinência.

O Ser se dá no cotidiano, aqui o lema é “voltar às coisas mesmas[7]”. As implicações desta proposta serão sugeridas no avançar de nossa investigação. Afirma, de modo a sintetizar o que queremos dizer, Luiz Furtado:

A dimensão principal do pensamento de Husserl consistiu, pois, em afirmar a existência de uma dimensão de origem absoluta de todo ser ou fenômeno, pré-conceitual e pré-predicativa (pré-ontológica, dirá Heidegger), do próprio Ser, encoberto pela alienação da vida cotidiana no mundo, de que a Ciência seria também tributária[8].

Poder-se-á nos questionar: qual seria o método, se assim se pode dizer, para que se efetive aquele voltar às coisas mesmas, ou ainda, ouvir as coisas mesmas? Ora, esta questão será o trampolim para o próximo tópico.

O MÉTODO DE HUSSERL: UM CAMINHO?

Não obstante as críticas endereçadas à Modernidade por parte do Filósofo, ressalta-se que o pensamento de Husserl está no âmago da Modernidade. Ora, se de um lado a moderna sociedade com o seu ideal de lançar luzes sobre as sombras em que se encontram o pensamento Antigo e Medieval, se vê na necessidade de uma absoluta ruptura. Por outro viés, ela precisa “se autofundamentar”, ou melhor, se autojustificar. Deste modo, o pensamento de Husserl, sem dúvida, encontrará sua expressão paradigmática.

 Para sustentar a ideia de que o pensamento de Husserl está na esteira do pensamento Moderno, embora crítico do naturalismo, ou do positivismo histórico[9], no qual Husserl percebe um esvaziamento da ideia de verdade. Cita-se a seguinte passagem:

É verdade que o ethos dominante da Filosofia Moderna consiste justamente na sua vontade de se constituir como Ciência de rigor, por meio de reflexões críticas, em investigações sempre mais penetrantes do método, em vez de se abandonar irrefletidamente ao impulso filosófico[10].

 Por este texto, fica evidente, que o Filósofo conhece a estrutura do pensamento Moderno e ao mesmo tempo a sua necessidade de fundamentação. Na busca de auto – fundamentação, vale dizer, Husserl apontará a Filosofia como sendo aquela que poderia salvar o pensamento fundamentando-o, Ressalta Christian Delacampagne: “(…) ele não vê melhor modo de fundar as ciências do que subordiná-las a uma Filosofia julgada mais ‘científica’ do que as ciências, cumprindo assim, a seu modo, o programa diretor do idealismo Europeu[11].”

Diante do esboçado, como articular a necessidade rigorosa de um fundamento com a experiência originária? Ora, será na esteira de tal experiência que Husserl acredita poder fornecer um fundamento, consequentemente veracidade a todo discurso científico. Assim, a tentativa husserliana consiste em resolver a crise da racionalidade científica[12]. Para tanto, Husserl propõe o método fenomenológico. Restituindo, assim, a possibilidade de se pensar, ou experiênciar a verdade absoluta, o ser, a essência. Adverte-se, entretanto, que Husserl não está restaurando o pensamento Antigo ou Medieval, há diferenças consideráveis, sobre as quais não será possível explorar neste ensaio. Uma das razões é que isto escapa ao nosso objetivo.

 Em que consiste o método fenomenológico? Aqui citaremos na íntegra o professor Luiz Furtado:

(…) a fenomenologia apresenta-se como verdadeira reforma da Filosofia, retomando a idéia originária de ciência rigorosa, ou seja, investigação metódica tendo em vista a elaboração de um conhecimento teórico, desinteressado e puro, necessário e universalmente válido, relativo à possibilidade de todo pensamento racional ou ciência em geral.[13]

Vê-se claramente que a pretensão da Fenomenologia não é pouca. Se será possível a efetivação de tal proposta, ou projeto, não é o nosso problema. Para uma compreensão, ainda que sumária, poder-se-ia apresentar as seguintes palavras chaves, a saber, redução fenomenológica, redução transcendental, epoké, intencionalidade, redução eidética, evidência, nóesis, hylé, noema.

 Diante de tais chaves de leitura, interessa-nos, sobretudo, a epoké ou a redução fenomenológica. No avançar de nossa investigação, tendo o objetivo delineado, acreditamos que a epoké, parte constituinte da Fenomenologia de Husserl como um todo, nos conduzirá ao ponto central de nosso ensaio. Ou seja, justificar a atividade filosófica como um exercício de escuta. Entretanto, antes de adentrarmos no enfrentamento com o termo em questão, pensamos ser válido citar mais um argumento, ou descrição do que seja a Fenomenologia:

O método fenomenológico consiste essencialmente num esforço de esclarecimento da experiência, esforço não à luz de princípios metafísicos ou transcendentais (como fizeram todos os filósofos anteriores), mas no âmbito da própria experiência, em plena disponibilidade para acolher toda a mensagem que a experiência transmite e comunica.[14]

 A Fenomenologia, em uma primeira aproximação, verte sobre a problemática da teoria do conhecimento. Dito de outro modo, a possibilidade do conhecimento é a temática em pauta[15]. Não entende-se o conhecimento como relação de um possível sujeito com um possível objeto, mas o modo como a coisa se dá para a consciência intencional. Ora, o ser dos objetos dados em sua essência à consciência intencional, vale dizer, dados como fenômenos, só existem em detrimento da consciência. Em outros termos, todo ser é ser para a consciência, revelado em sua essência como fenômeno. Afirma Luiz Furtado: “Ser para a consciência é o modo absoluto de ser do ente, porque é sua forma de manifestar-se.[16]”

Por outro lado, a consciência será sempre consciência intencional de algo, ou seja, “consciência de”. Neste sentido, a consciência já nasce transportada para algo que ela própria não é. Salienta Luiz Furtado: “E sendo intencional a consciência nasce já transportada para um ser transcendente, por ela visado, e que ela própria não é[17].” Portanto, não há em Husserl a separação clássica entre sujeito e objeto. Aqui, toda consciência é de algo e todo objeto é para a “consciência de.” Ora, não pode haver consciência intencional do não ser. Afirma de modo à sintetizar nossa exposição no que refere à problemática, “sujeito e objeto”, Luiz Furtado: “O ser para a consciência do ente não pode ser pensado como inexistente pois, neste caso, o pensamento – na medida em que toda consciência é consciência de alguma coisa – seria sem objeto e, portanto, não ser[18].”

Tendo esboçado, ainda que de forma sumária, o método criado por Husserl, cumpre salientar: o método fenomenológico é um caminho. Para onde? Para as coisas mesmas, dadas em carne e osso. Deste modo, pode-se afirmar que a Fenomenologia deve se pautar na evidência, pois esta é uma forma de doação da própria coisa. Garante-nos Luiz Furtado: “Por último a fenomenologia deve pautar-se pela evidência, definida por Husserl como apresentação ou doação da própria coisa. (…) Trata-se pois de viver a presença da coisa visada na plenitude e claridade da sua essência[19].”

EPOKÉ: RUPTURA E PROPOSTA

No presente tópico, trata-se de adentrarmos nos méritos e confrontos exigidos pela epoké. Como sugerido no tópico anterior, um enfrentamento do termo em questão se faz necessário. Pensa-se que tendo esclarecido alguns problemas, agora é possível pensar os desdobramentos ou implicações surgidos a partir da redução fenomenológica. Primeiramente, trata-se de responder a seguinte questão: o que significa, para a Fenomenologia husserliana, a epoké, ou a redução fenomenológica? Significa, na melhor das hipóteses, a suspensão de todos os juízos adquiridos e impostos a nós pela tradição filosófica sobre o que seja o mundo real ou ideal. Em outros termos, implica em renunciar todos os juízos pré-concebidos. Ora, aqui está a possibilidade de uma experiência puramente filosófica, a saber, uma reação ao óbvio habitual. É inegável o fato de que a especulação filosófica surge a partir de um estranhamento do “mundo” [20].

 Não se trata, pois, de um estranhamento idêntico ao taumos aristotélico, pois este valendo-se da potência do conceito busca tudo identificar para que a dúvida, ou o estranhamento seja sanado[21]. Para longe desta perspectiva, partimos da hipótese de que para Husserl o imperativo é ‘voltar às coisas mesmas’, frequentá-las, ouvi-las. Assim, nenhum conceito poderá ser tomado em sentido absoluto, pois a própria coisa nunca se dá de forma acabada, de modo que haverá sempre algo mais a ser dito, visado. Adverte-se que estamos problematizando, ou pensando nosso ensaio a partir somente da epoké. Portanto, não estamos dando margem para nenhum tipo de reducionismo. Não estamos, pois, reduzindo ou afirmando que Husserl seja um cético ou racionalista, ou ainda, empirista. O fato é que ao não fazer uso dos pré-conceitos, pensa-se que as coisas se manifestarão com são, ou seja, em carne e osso[22].

 No que refere à epoké afirma Luiz Furtado: “Epoké: suspensão dos juízos ingênuos sobre a existência e realidade do mundo em si. Aceitação do mundo tal qual vivido, isto é, redução do mundo ao fenômeno do mundo, ou à forma do seu aparecer como horizonte temporal e espacial[23]”. Nosso objetivo, assim como o do Husserl em estudo, não é silenciar todo discurso, mas apontar aquilo que é anterior ao sistema filosófico, por isso a real necessidade de se suspender os juízos. Afirma Merleau – Ponty, “Husserl quer compreender aquilo que é não filosófico, o que antecede a ciência e a Filosofia.” Ele quer “Descobrir uma passividade originária, em oposição à passividade secundária do hábito[24].”

Tendo delimitado o que se entende por epoké, agora trata-se de apontar alguns de seus desdobramentos. Em uma primeira aproximação, a suspensão de juízo nos remete a dois acontecimentos, a saber, a uma ruptura com o positivismo histórico e a um retorno às coisas mesmas. Salienta Luis Furtado: “A rejeição de pressupostos assume em Husserl a dupla face da recusa da História da Filosofia e do imperativo de frequentar as coisas mesmas[25].” Diante do imperativo de frequentar as próprias coisas, ou ouvi-las, a História da Filosofia se torna desnecessária. Isto implica dizer que a experiência da consciência com o fenômeno evidente, dado em sua originalidade, tem primazia ontológica sobre o passado e sobre o futuro. Expressa Husserl, quanto à História da Filosofia: “Literatura filosófica crescente até o infinito, compreendendo pseudo opiniões e pseudo críticas (…) mera aparência de filosofar[26].”

Se por um lado a epoké nos confronta à rejeição da História da Filosofia, por outro surge uma proposta de voltar às coisas mesmas. Em que implica tal proposta? Ora, segundo nossa hipótese, significa uma afirmação do cotidiano, este não no sentido de hábito, mas no sentido de experiência. Ao que podemos afirmar, toda experiência de um fenômeno no seu doar-se a uma consciência intencional, de modo evidente, sem pressupostos, no momento presente em que se efetiva é uma experiência absoluta. Portanto, a investigação filosófica deve partir não de dogmas, conceitos ou sistemas, ou ainda, de filosofias, mas deve partir das coisas e dos problemas[27].

EPOKÉ: LIBERDADE EXPRESSIVA DO SER

Uma vez que a epoké ou redução fenomenológica nos “proíbem” a utilização da História da Filosofia como referência ao Ser, resta-nos afirmar a dissolução da própria Metafísica. Assim, nos instalamos em outro registro de pensamento, isto é, no plano da liberdade ontológica. O presente tópico partirá da seguinte hipótese: a liberdade é a possibilidade do Ser se dá como fenômeno. Como esboçado na delimitação de nosso ensaio, o fenômeno é o modo absoluto de manifestação do Ser. Advertimos, porém, que não estamos propondo uma reflexão do Ser sistematizada nos moldes metafísicos, mas do Ser enquanto manifestação originária das próprias coisas, logo a liberdade é o modo pelo qual o Ser se dá e não a dialética, ou qualquer sistema de pensamento pré-posto.

 No âmbito da pesquisa, no qual nos encontramos, pergunta-se: o que se entende por liberdade ontológica? De forma sumária, diríamos que a liberdade é a não necessidade de se utilizar a História para compreender o Ser. Dito de outro modo, a liberdade é o pensamento que se assume isentando-se de pré-conceito, ou melhor, a liberdade equivale a “deixar Ser”. Ora, isto só será possível quando nos voltarmos para a realidade vivida, frequentando as coisas mesmas, sem nos valermos de nenhum pressuposto. Ontologia porque estamos no plano do Ser enquanto Ser[28], logo a liberdade ontológica será deixar o Ser Ser.

 Aqui o Ser, as coisas próprias se doam à consciência intencional. Para longe de qualquer projeto de caráter dialético, o qual a nosso ver obriga algo aparecer e chama-o de Ser, cita-se, por exemplo, os princípios lógicos, a saber, o princípio de identidade, de não contradição, de razão suficiente, do terceiro excluído e a impossibilidade do progresso ou do regresso ao infinito[29]. Tais princípios estabelecem o modo como o Ser deve manifestar-se. Ora, como vimos, o Ser se manifesta no horizonte originário, pré-conceitual da experiência vivida, logo os princípios aludidos não passam de pré-conceitos.

 Ao contrário dos princípios lógicos, partindo da epoké husserliana, o Ser das coisas se doa a nós. O Ser, deste modo, se oculta e se desoculta ao mesmo ‘tempo’, noema e nóesis. Se de um ponto o que se vê é apenas um dos lados da mesa, afirma-se, porém, a partir de uma idealidade imaginária, ver a mesa como um todo. No entanto, o que se doa à consciência intencional é apenas uma das faces da coisa, deixando múltiplas facetas escondidas. Afirma Luiz Furtado: “Assim o objeto é dado. Ele se apresenta sempre sob um aspecto ou perspectiva, deixando indeterminados suas infinitas faces não imediatamente intuídas[30].” Isto nos possibilitará uma experiência sempre originária das coisas. Nesta vertente o conceito não é de modo absoluto, capaz de aprisionar o ser das coisas. Fica, portanto, patente que o Ser se manifesta fenomenicamente anterior a qualquer conceito. Assim, a liberdade é a casa do Ser.

ESCUTA COMO ACOLHIMENTO DO SER

Se bem compreendido o percurso da reflexão até aqui, sem dúvida, se perceberá que a escuta é a melhor postura do filósofo. Não se trata, porém, de uma atitude passiva, inerte diante do real, mas de uma escuta no sentido de acolhimento. Não se pode perder de vista o nosso ponto de referência, a saber, a epoké husserliana. Pois é nesta dimensão da fenomenologia que se buscou traçar as linhas mestras do presente ensaio. Adentrar em outros pontos da reflexão de Husserl foi inevitável, mas não nos perdemos do principal, isto é, apontar a partir da redução fenomenológica a atividade filosófica como exercício de escuta.

 Para tal exercício, porém, não é reservado a passividade, ou a indiferença. A postura da escuta exigirá uma verdadeira saída da inércia produzida pelas respostas prontas e acabadas. Assim, o registro no qual o pensamento filosófico se efetivará se dará no plano do “voltar às coisas mesmas”. Isto requerirá, como já exposto, um abandonar os pré-conceitos, para que a coisa se dê para a consciência intencional em sua absoluta liberdade. Cumpre dizer, a consciência intencional é voltada para a coisa, uma vez que toda consciência é de algo, pois não há consciência do não ser. Do mesmo modo, toda coisa é para a consciência intencional. Portanto, as duas experiências nascem e morrem juntas. Ressalta Luiz Furtado:

A consciência é tão essencial ao objeto como seu objeto é para ela. A consciência e o objeto por ela visado formam uma correlação ou estrutura fenomenológica indispensável e única. O objeto (noema) e a consciência nascem, por assim dizer, juntamente. O objeto tende a ser consciência plena (como uma percepção capaz de captar ao mesmo tempo os seis lados de um cubo), e a consciência tende a ser objetiva (como uma consciência sem perspectivas ou pontos de vista).[31]

 Não se trata aqui de estabelecer uma crítica a toda pretensa conceituação sistematizada. Interessa-nos, porém, a deslegitimação[32] de todo tipo de ratio sistematizadora, fazendo emergir no plano da pura evidência do fenômeno, o Ser das próprias coisas em carne e osso. Isto implicará em um verdadeiro deixar ser. De modo que podemos afirmar, “A linguagem é, pois, a morte das coisas.[33]” Ora, qual deve ser a postura de quem acolhe? A isto citamos o próprio Husserl: “tudo o que se oferece a nós na intuição de modo originário (em sua realidade corporal por assim dizer) deve ser simplesmente recebido por aquele ao qual ela se doa[34].”

Deste modo, nossa hipótese é a de que diante da evidência fenomênica, não há necessidade de argumentos, ou uma linguagem academicamente sistematizada em defesa do que se dá como fenômeno. Afirma Husserl: “Importa permanecer fiel ao princípio dos princípios, a saber, que a claridade perfeita é a medida de toda verdade e que os enunciados que conferem aos seus dados uma expressão fiel não precisam se preocupar com argumentos, por mais refinados que sejam[35].”

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Diante do exposto ao longo da reflexão, vale uma pequena advertência. Nosso objetivo consistiu em justificar, a partir da epoké husserliana, a Filosofia como exercício de escuta. Tal exercício, se bem compreendido, nos levará ao entendimento de que a atitude da escuta é anterior a conceituação, ou até mesmo à Filosofia considerada em sua pretensa rigorosidade. A experiência da escuta é desafiadora, pois nos coloca o tempo todo diante do não conhecido, diante do diferente, extravagante. Assim, pensamos ser possível, perante tal exercício, uma experiência eminentemente filosófica. Isto justificaria a Filosofia como estranhamento do mundo.

 A atividade filosófica encontra seu impulso, por assim dizer, na não Filosofia. Dito de outro modo, A Filosofia se efetiva a partir da desconsideração de todo pré-conceito, isto é, diante de um voltar às coisas mesmas. Cumpre dizer, o fenômeno não é uma fachada de uma possível essência, mas o modo pelo qual a coisa se doa à consciência intencional. Aqui está a diferença do fenômeno da compreensão kantiana, pois nos moldes de Husserl o fenômeno aponta para outro fenômeno. Pensamos que a sedução do pensamento de Husserl, de acordo com nossa interpretação, está no fato de ele nos possibilitar o assombro e encanto ao mesmo tempo. Há deste modo, uma confluência entre estranhamento e escuta. Filosofar é estranhar o mundo na medida em que se voltar às coisas mesmas, sem se valer de pré-conceitos. A isto chamamos “exercício de escuta”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

•HUSSERL, E. A Filosofia como Ciência de rigor. Tradução de Albin Beau. Editora: Coimbra: Edições 70, 1960.

•HUSSERL, E. A ideia da Fenomenologia. Tradução de Artur Morão. Rio de Janeiro. Edições 70.

•BUZZI, Arcângelo R. BOFF, Leonardo. Introdução ao pensar: o Ser, o conhecer, a linguagem. 3. Ed. Petrópolis: Vozes, 1973.

•MOLINARO, Aniceto. Metafísica: Curso sistemático. Tradução de NETTO, João Paixão; FRANGIOTTI, Roque. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004.

•OLIVEIRA, Ibraim Vitor de. PAIVA, Márcio Antônio de. (org). Violência e discurso sobre Deus: Da desconstrução à abertura ética. São Paulo: Paulinas, Puc Minas, 2010.

•MONDIN, Battista. Curso de Filosofia: os filósofos do Ocidente. Tradução de LEMOS, Benôni.3. ed. São Paulo: Paulus, 2002. (Coleção: Filosofia – 3).

•DELACAMPAGNE, Christian. História da Filosofia no Século XX. Tradução de MAGALHÃES, Lucy. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

Céu Espiritualismo